Lisboa, Outubro de 1986.
Eu tinha saído de uma turma muito "hermética", como disse há bocadinho um ex-colega do meu nono ano, com quem me cruzei por mero acaso... (Coincidência!)
Essa turma tinha um núcleo grande, que tinha vindo junto desde a infantil. E, como pode acontecer nessas situações (nesta aconteceu), era muito fechado a "estranhos", como eu e todos os que não pertenciam a esse grupo. Mas tinha gente fixe, atenção. Só que não era muito "simpática", digamos assim... para não ferir susceptibilidades.
No Verão, nas inscrições no Ginásio do incomparável Liceu Rainha D. Leonor (lembram-se? :) ), meti-me na Área E - Artes Visuais. Para quem queria ir para Engenharia, não está mal...
A verdade é q não queria sair do Rainha D. Leonor, mas queria ir para as Engenharias, cuja Área (a B) não existia lá na escola.
Mas quem é que, no nono ano, sabe verdadeiramente o que quer seguir? Que curso tirar? Ou se tem uma vocação assim logo desde muito cedo (o que não era o caso), ou então... Olha, seja o que Deus quiser. Tinha um Pai engenheiro, um tio engenheiro, amigos deles engenheiros, gostava de Ciências e de Matemática... Pois fui para Engenharia. E não me arrependi. Felizmente.
A Área E tinha ciências q.b. para que, no 12º ano, pudesse estar numa área que desse acesso às Engenharias. Como tal, e uma vez que não ia nada à bola com Saúdes, Economias e derivados, zás!, Área E. Artistas e C.ª. Uma aventura...
Foi a melhor escolha que fiz na vida de estudante.
E foi nestas condições que conheci o grupo de malta mais giro que encontrei em dezassete anos de escolas. O mais heterogéneo. O mais rico. O mais "alargador de horizontes".
Jaime; Tiago; Carreira; Rina; Pratas; Susana; Alice; Carlinha; Freudenthal; Petinga; Alex; Pissarra; Gonçalo; Osmar; Nuno; Tomé; Odete; Luís; Ratana; Fuentecilla; Baptista; Peixoto; Mira; Vanda; Lúcia; Miguel.
Talvez faltem aqui alguns nomes... mas espero sinceramente que não!
Havia - e muitas vezes na mesma pessoa! - punks, poetas, "meninos", betinhos, marrões, pintores, filósofos, jogadores da bola... enfim. Era uma turma de Artes, e... e está tudo dito? Não, não está nada tudo dito. Esta turma foi, de longe, a melhor turma de artes do Rainha D. Leonor. E se não concordam, que me provem o contrário!
Havia uma coisa que a distinguia logo à partida: ninguém sobressaía. Ninguém. Havia alguns sub-grupos, como em todas as turmas. Acho que é normal, isso. Mas não havia ninguém que, ao querer ser melhor ou maior do que os outros - o que, por vezes, acontecia - , não "apanhasse" logo. E não estou a falar em pancadaria (se bem que, por vezes, apetecia mesmo!). Não: era devidamente posto no seu lugar apenas com as "bocas" certas. E funcionava! Porque, inconscientemente, a malta respeitava-se.
Se calhar, não era tão inconscientemente como isso... :)
Havia gostos diametralmente opostos, origens muito diferentes, feitios por vezes incompatíveis... Não falávamos todos uns com os outros assim, de caras. Alguns tornaram-se bons amigos. Outros não passaram de colegas. Mas havia um certo espírito de turma, uma certa "alma" que nunca mais encontrei, nem nunca mais esquecerei - eu, que não sou assim muito de dizer "sempre" e "nunca", aqui arrisco. :)
Já tínhamos todos (e ainda temos) uma certa "base" que permitia sustentar as diferenças. E que permitiu também criar e manter esse tal "espírito". Não havia ali imposições.
Nós queríamos estar ali. Escolhemo-lo. E gostávamos de estar ali! De conversar, de conhecermo-nos, de desenhar (até eu, até eu!...), de gozar com os mais engraçadinhos, de jogar snooker no actual Centro Roma, do Botequim do Zêzere, da Sul América, etc. E também "de aprender"... Bem, tudo tudo, não - as Matemáticas e Físicas eram perfeitamente dispensáveis para uma boa parte de nós, penso. Mas acho que, também aqui, tivémos sorte com um grupo de professores que deve ter sido absolutamente único.
A isso já lá vou.
A maioria estava no seu elemento natural. Eu não.
Lembro-me, logo nas primeiras aulas de T.E.P.R. (Técnicas de Expressão e Práticas de Representação), que o nosso professor Henrique nos pediu para desenhar um "mono" que foi buscar ao pátio: era o que restava de uma antiga máquina de pastilhas, ou coisa que o valha. Tinha um pé de ferro amarelo que, preso numa base de cimento (acho que era cimento...), suportava uma caixa vermelha, mais ou menos paralelipipédica, de onde saíam duas "bolas" transparentes (dentro das quais estariam as pastilhas). Estava quase em ruínas, se bem me lembro...
O nosso Prof. pôs a dita cuja em cima do estrado da sala, e disse-nos:
- Agora, desenhem isto à vossa vontade.
Julgo que a lápis.
Aqui o DiNapoli pega numa bela folha A3 de papel cavalinho (lembram-se?), e não faz mais nada: um desenho de cerca de 7x7 cm, bem no meio da folha! À volta, nada. Branco. O vazio.
O Prof. Henrique chega ao pé de mim, e diz:
- Ó rapaz, tu estás com medo do papel!
Eu "enfiei", mas não me retraí. E parti para a folha já com a vontade de lhe mostrar que também a conseguiria encher. E enchi. Não ficou nenhuma obra de arte (nunca ficou... :) ), mas foi o princípio do fim do medo do papel.
Adorei tudo. Sinceramente! E foi extensível ao 11º ano, também!... Mas atenção: os professores, como já o sugeri, tiveram um papel fundamental nisto tudo, também. Há que ser justo.
Recordo com um sorriso a aprendizagem inicial das "Artes" - Teoria do Design e a tal T.E.P.R., que foi do mais enriquecedor que alguma vez vivi - curvo-me perante as figuras dos grandes professores Henrique e M.ª José Otollini - a História de Arte (idem, idem, aspas, aspas) - o pouco que sei das Artes a esta "escola" o devo! - a "Filosofia aplicada às Artes" (tivemos, nessa área, dois excelente professores que eram "marados" até à quinta casa... mas também, não fomos todos meio "marados" nessa altura? - mas ambos impecáveis, cada um à sua maneira: o Perdigão e a Beatriz Vieira), a excelentíssima Luísa Albuquerque que, em Geometria Descritiva, nos pôs a ver "no espaço" a 3-D e não só..., as magníficas professoras de Português - a Maria de Lurdes Guisado (10º ano) e a Conceição "qualquer coisa", do 11º (eu já cá ponho o nome da professora, que agora me foge...) - que nos puseram a ler e a escrever Português a sério ("Os Maias", no 11º ano, foi a leitura e posterior análise que mais prazer me deram na escola toda!) - a professora Odete Botelho (que já conhecia de anos anteriores, e que foi a melhor prof. de Matemática que tive no Liceu!)... e tantos outros que agora não menciono porque, pura e simplesmente, não me lembro dos seus nomes. As minhas sinceras desculpas por isso.
A professora de Português do 11º ano chamava-se Conceição Sousa. Obrigado, Jaime!
Mas, que me desculpem todos os professores: sem um grupo, uma turma daquelas, isto não tinha sido a mesma coisa... :)
Assim de repente, vem-me à memória a pinta do Jaime que, já na altura, tinha cá "uma música" (Eh!eh!eh!), a calmaria do Rina - do desenho ao basquete - os lacinhos do Pratas (lembras-te?) e o seu gosto pela fotografia e pelo cinema (a quem tenho que agradecer o gosto que tive e que ainda tenho em ver o "Rumble Fish"), além das suas profundas reflexões (pelo menos, antes do álcool começar a fazer efeito... mas, espera!... depois do álcool também!!!!), a jeitaça para o desenho da esmagadora maioria da malta!, o smile (quase) permanente da Odete - mas atenção: quando lhe chegava a mostarda ao nariz, cuidado com ela! - as imensas histórias que o Capristano contava, sempre cheias de humor, o gozo do Gonçalo quando a prof. de Matemática o chamava ao quadro (ele, que não via NADA daquilo, lá se safava, sem ninguém perceber como... fartávamos de nos rir!), a pinta da Carlinha (nome posto pelo Jaime, cuja versão completa era "A-Carlinha-que-morava-no-prédio-da-Sul-América", não era?), o eterno sorriso e boa disposição do Mira, aquele grunho do Baptista (o "pááá"), o descobrir, aprofundar e amar músicas e grupos que vou ouvir até ao fim - os Durutti Column, os Joy Division, os New Order, os Supertramp, os Simple Minds, os Cure, etc., etc. - a partilha desses e de outros gostos musicais com muita malta - punks inclusive!
Lembro-me também de duas ou três grandes jantaradas - uma delas foi num primeiro andar de uma garagem no Largo dos Anjos, onde acabou tudo com uma pifalhadazita -, do Pratas a atirar uma máquina fotográfica pelos ares, ali nas traseiras do Liceu, do mesmo Pratas a atravessar a linha de Metro (!!!) da estação Roma, passando por cima dos dois carris de Alta Tensão - nem te apercebeste do imenso perigo que correste, meu anormal! - do Tiago a contar as aventuras do concerto em Madrid nos UB40+U2 (na altura, quem é que ia a Madrid ver um concerto?), das visitas de estudo, da pinta do Mira sentado, com o tronco direitíssimo!, a deslizar (é, é o termo...) na sua Yamaha DT... Enfim, foram tantas coisas... E giras! :)
Afinal de contas, esta era a altura, entre outras coisa, dos croissants com chocolate, do Rali de Portugal, da Fórmula 1 no Autódromo do Estoril, dos Heróis do Mar, dos Xutos, da Sétima Legião, dos Peste e Sida, das Yamaha DT, do ZX Spectrum, dos sapatos de vela, da meia branca com sapato preto, dos rádios tipo-"tijolo", etc.
Eram os anos Oitenta no seu melhor.
Curiosamente, não me lembro de atritos, ou chatices... Também deve ter havido, mas confesso que não me lembro.
Ficam ainda por contar muitas outras coisas que já nem cabem aqui. Não dá.
Percebo agora porque andava com dificuldade para ordenar as ideias e escrever sobre isto... É que é impossível fazê-lo! Mas, pelo menos tentei...
Há uns meses, depois de ter vindo sucessivamente a reencontrar, aqui e ali, uns quatro ou cinco destes gajos, resolvi promover uma jantarada. Para reunir a malta. Os nossos vinte (!!!) anos de turma... (Vinte anos... Incrível!) Para tentar matar as imensas saudades que tinha (e ainda tenho!) deles, e desse tempo.
Graças à ajuda de muitos deles e a um qualquer alinhamento planetário que deve ter certamente acontecido, apareceram dezasseis (16!!!) desses "bravos". Babes e gajos. Vejam lá que até apareceu uma actriz da nossa "praça"... um luxo! :)
Foi um milagre! Com tanta malta já casada e com filhos, eu acho que foi um milagre. E foi algo que não esquecerei. Primeiro, porque foi lindo, lindo mesmo!, ver o brilho nos olhos da malta. Mas da malta TODA! E os sorrisos! E todos os inevitáveis "Estás na mesma, pá!" (apesar de estarmos tudo menos na mesma, estava "lá" tudo aquilo de que ainda nos lembrávamos). Depois, porque foi bom saber que estamos cá todos. É um sentimento um bocado egoísta, eu sei, mas é assim.
Gozem à vontade, mas isso, a mim, encheu-me de uma alegria que não consigo exprimir. Mesmo que não tenha sabido de vós durante muitos destes vinte (!!!!) anos, foi única a sensação de saber que estamos cá todos. E que estamos bem.
A coisa foi de tal maneira que, quando veio o empregado perguntar o que é que eu ia comer, nem eu nem o Jaime (que estava à minha frente a conversar com o Gonçalo, mas completamente esmagado com a cena toda - como, de resto, vi igualmente a Carlinha, que só sorria, e o Pratas...) tinhamos sequer olhado para a lista!!! E olhem que eu gosto muito de jantar fora... Só me lembro de alguém falar em Polvo à Lagareiro; peguei na deixa e disse logo: "Olha, passa a dois!".
É claro que não somos os melhores amigos uns dos outros, apesar de haver alguns que nunca perderam o contacto. Que não vamos ser a next big thing (isso, meus amigos, já fomos... :) ). E que não nos vamos voltar a dar como dantes. Afinal de contas, cada um tem a sua vida. Muitos seguiram caminhos quase opostos - basta ver que alguns não se viam há praticamente vinte anos...
Mas posso dizer, orgulhosamente, que, graças àquela turma (alunos e professores), "a" minha Turma, aqueles anos foram os melhores anos da minha vida.
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3 comentários:
olha, para não ser lambe cús, aqui vão as correcções (ora toma que já estás a aviar):
- a senhora professora, por quem eu tinha uma paixão platónica, chama-se Conceição Sousa
- o nome da Carla é: Carlinha do prédio da Sul-América.
- eu não tenho música. nem tinha. aliás, eu sou "actoooooor".
:)
gostei sim senhora.
Quanto ao pitx.....tem musica sim....mas nunca o vi actuar ao vivo
bjoka
Deve haver aí qualquer equívoco; deves estar a falar de outro Pratas qualquer que não eu. É uma cabala para denegrir a minha imagem: eu raramente usava lacinho.
...
De facto foram anos excepcionais, o tipo de anos que é bom todos nós termos um ou dois no passado, para nos aquecermos no futuro. Acho que o que mais gostei desses anos é um certo sentido de aventura: a nossa vida era como a folha de papel em branco de que falas. Podíamos só fazer o tal "rabisco" de 7x7 cm ou garatujar a folha toda. E tinha uma grande vantagem: podíamos em certa medida usar a borracha (mais borrão menos borrão). Acho que esses anos foram folhas bem preenchidas, com dinamismo e convicção, dignas de se emoldurarem e porem na parede.
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